Era um sábado recém nascido quando o tempo fechou
uma manhã gelada
cinza,
dias nublados tem por hábito me causar uma euforia íntima
secreta.
Estava voltando da feira as pressas, com as mãos ardendo de carregar as sacolas
Na rua de casa, infinitas flores de ipê roxas cobriam o asfalto
como quem sabe que amo tapetes
e ipês,
o que me fez esquecer a pressa
as mãos queimando e os planos para o almoço, durante uma música inteira.
Abri o portão deixando cair uma sacola e as laranjas fugiram pela calçada
cada uma para um lado, a vizinha riu do outro lado da rua,
Um dia comum.
Entrei em casa e o alívio de largar as sacolas na mesa me abraçou
um silêncio atípico tomava conta do sobrado antigo,
estava sozinha.
Uma constatação que um dia me fez feliz
mas os tempos mudaram, bem como a casa e quem vive nela comigo.
Duas portas me separavam da escada de madeira, abri cada uma delas chamando os nomes das pessoas e gatos
silêncio.
Subi os 18 degraus com a pressa de quem está sendo perseguida, e estava
me sentia, desde a rua de ipês, perseguida por uma vontade insuportável de estar entre os meus.
Arranquei as roupas ainda na beira da escada e corri para o banho
a água quente me encontrou
enlaçou meu corpo sem deixar nada de fora. Fechei os olhos satisfeita
foi quando ouvi uma batida na porta, seguida da voz dela:
— Íria?
Era Sara, estranhei sua chegada, ainda era manhã.
— Oi amor. Pode entrar
Sara entrou fechando a porta rápido atrás de si, sentou no vaso fechado e ficou em silêncio
o box embaçado me impedia de ver sua expressão, então abri uma fresta para poder olhar para aqueles olhos rasgados, por trás dos óculos grandes e redondos
que como resposta começaram a embaçar pelo vapor.
A expressão em seu rosto era dura como quem fechou portas dentro de si.
Cortei o silêncio:
— E aí? Como foi?
Ela riu de um jeito frio e eu fechei o box
Comecei a lavar meu cabelo curtíssimo e ao mesmo tempo Sara disse do outro lado:
— Foi ruim
— Ruim… como?
— Acabou de vez.
A água fez silêncio,
ela, que até então tinha o poder de enevoar o banheiro todo, pareceu esfriar sob minha pele
gélida,
escorreu pelo meu corpo levando pelo ralo minhas palavras.
Sara pareceu entender
continuou:
— Ela disse que eu não preciso dela. Que não recorro a ela quando preciso. Disse que sou auto suficiente demais…
Dessa vez eu é que precisei rir friamente, completando:
— Como assim, Sara? Quais eram as expectativas dela? Te trata como a mãe dela e depois reclama da sua autossuficiência?
— Por isso é que dei um basta.
Quando está pensativa, ou triste, Sara usa poucas palavras
uma expressão impassível
seus olhos de fenda que normalmente exalam um tom matinal, solar
acabam nublados nos dias difíceis
não precisava vê-los para saber.
Cautelosa, perguntei:
— Então foi você quem terminou?
Do outro lado, Sara se levantou
andou até a pia e passou as mãos pela cabeça raspada
distingui pouco por trás do box embaçado,
Sara constatou:
— Eu renasci, né?
Ela se virou na direção do box e abriu uma fresta para me olhar nos olhos,
pude confirmar o estado das nuvens lá dentro
continuou:
— Agora eu fecho as portas e pronto. Como é que ela teve coragem de tentar virar minhas qualidades contra mim, Íria? Chegou com todos os sentimentos dela e colocou nas minhas costas, para depois dizer “que se não a ela, recorro a quem quando preciso?”.
A enxurrada de seus olhos levaram minhas palavras antes mesmo que se formassem
Sara completou:
— Eu recorro a mim! Recorro a mim e disse isso a ela. Quando as coisas não vão bem, quando o mundo parece que não passa de hoje, é a mim que eu recorro primeiro.
Nessa hora toda água do mundo
transbordou em nosso pequeno banheiro
sob o peso de uma verdade compartilhada
essa, especialmente.
— Entra aqui.
Disse, abrindo o box.
A mulher chuvosa tirou as roupas
os óculos
já o pesar, entrou junto
Fiz silêncio enquanto ela se molhava ainda mais,
o peito de Sara arfava como um sinal de que o coração, encharcado demais
vazava
ela me abraçou forte e a água quente nos abrigou
As águas do chuveiro e dos olhos levaram pelo ralo o nosso ímpeto insuportável e compartilhado de tutelar o mundo.
Escutei as vozes no andar de baixo
sorri.
uma vida inteira deste hábito me ensinou,
recorro a mim porque posso
e preciso.
Anuviada, me desfaço
Recolho as partes que ficam
e abro portas mais uma vez
insistindo em encontrar caminhos novos para correr
novas casas para morar e gente nelas a quem recorrer,
também.