Quarto sem porta

Maní
3 min read4 days ago

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Era uma sexta feira, acho

estava sozinho naquela casa de portas de metal que morei, quase em frente a faculdade

a casa era insuportavelmente quente e as portas de ferro ao meu ver pareciam uma ironia ridícula

Uma das primeiras coisas que pensei quando as vi era que a vida estava tentando tirar uma com a minha cara, admito que ela foi bem

Provavelmente estava um calor infernal, combinando com meus pensamentos que insistiam em me provar que eu mesma era um demônio, ou vários, dentro da minha pele de gente

A sexta feira já não tinha mais sol, e faziam poucas semanas desde aquela conversa, em que constatei ainda mais o meu peso sobre o mundo

um penso denso e tão cheio de erros que não estava dando conta de aguentar, naquele tempo

As portas de metal o tempo todo me lembrando que podia queimar no fim do mundo, sob a terra vermelha que subia ao redor e ainda assim concordaria

O fogo limpa, afinal

Ainda era tudo tão recente

a casa, as portas de metal, nosso encontro, reencontro e desencontro

A sexta a noite sob minha cabeça e por dentro da casa de mim,uma vontade enorme de refazer o tempo

de tentar arrancar o demônio de dentro da minha pele

não dava, já sabia desde lá que não tinha mais como voltar atrás

Estava naquele quarto que durou alguns meses, aquele grande e sem porta

Ouvi o barulho da moto encostando

Vicente tinha acabado de chegar, já não morávamos mais juntos nessa época

o nome ainda recém nascido pra mim

a pessoa, por outro lado, já havia nascido crescido e até nascido mais uma vez

ele chegou, novo e velho ao mesmo tempo

estávamos sem nos falar há alguns dias, naquele ponto, depois de todo o céu cair sob nossas cabeças e eu precisar de tempo, ou era o que pensava que queria

Independente de tempo ou céu, ele veio

entrou na casa e o clima era denso e estranho, como eu por dentro

Estávamos na cozinha, que dava direto para a não porta do meu quarto

Lembro de sentir um fogo ardido por dentro que me fazia andar pra lá e pra cá, passando naquele portal incômodo onde devia ser minha porta – e como eu queria ela ali

Ele estava lindo como sempre, com uma camiseta verde que ascendia seu rosto,

parado ao lado da mesa improvisada, Vicente me olhou com aqueles olhos castanhos estreitos que já me conheciam por dentro, que sabiam fazer meu sangue tremer de muitas formas

ele me disse:

– vamo comigo! Hoje é sexta feira, tá calor, vai ser bom um role cultural. Ficar ao ar livre, sei lá. Posso te trazer embora depois

Andei pelo portal do inferno, entrando no quarto mexi nas coisas da mesa de forma desorientada, não sabia o que fazer com as minhas mãos nem com nada em mim, sem olhar pra ele, disse:

– não vou, ainda tô muito mal. Não sei se vai ser bom a gente estar junto, o que isso vai causar por lá... To muito confuso.

Seguiu-me o silêncio

Fui e voltei do quarto algumas vezes, ele me olhava fixamente e sem conseguir retribuir perguntei:

– o que foi? Porque você quer me ver ainda assim? Com tudo isso acontecendo

– Ele me olhou com indignação –

– Eu quero estar na sua vida, posso?

levei um baque

as portas de metal sendo arrancadas dos batentes,

o chão tremeu sob meus pés e a terra vermelha lá fora de agitou, subindo pra me fazer companhia

A água jorrou como numa enxurrada através de mim, abrindo um buraco no meu peito já fragilizado da vida

O caos instaurado e o inferno perdendo a forma diante da realidade, porque demônio ou não, vivo justamente na terra vermelha e quente

Demônio ou outro ser vivo, já não importava.

A pergunta me fez encarar de frente, minha pele ainda viva e o amor estava respirando, ali mesmo, sem porta, na terra, céu ou no inferno, em todo lugar, mas me querendo por perto

e dentro

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Maní

Escrevo para não morrer e acabo vivendo mais do que o planejado.