Águas

Maní
4 min readJul 26, 2022

--

Era um sábado recém nascido quando o tempo fechou

uma manhã gelada

cinza,

dias nublados tem por hábito me causar uma euforia íntima

secreta.

Estava voltando da feira as pressas, com as mãos ardendo de carregar as sacolas

Na rua de casa, infinitas flores de ipê roxas cobriam o asfalto

como quem sabe que amo tapetes

e ipês,

o que me fez esquecer a pressa

as mãos queimando e os planos para o almoço, durante uma música inteira.

Abri o portão deixando cair uma sacola e as laranjas fugiram pela calçada

cada uma para um lado, a vizinha riu do outro lado da rua,

Um dia comum.

Entrei em casa e o alívio de largar as sacolas na mesa me abraçou

um silêncio atípico tomava conta do sobrado antigo,

estava sozinha.

Uma constatação que um dia me fez feliz

mas os tempos mudaram, bem como a casa e quem vive nela comigo.

Duas portas me separavam da escada de madeira, abri cada uma delas chamando os nomes das pessoas e gatos

silêncio.

Subi os 18 degraus com a pressa de quem está sendo perseguida, e estava

me sentia, desde a rua de ipês, perseguida por uma vontade insuportável de estar entre os meus.

Arranquei as roupas ainda na beira da escada e corri para o banho

a água quente me encontrou

enlaçou meu corpo sem deixar nada de fora. Fechei os olhos satisfeita

foi quando ouvi uma batida na porta, seguida da voz dela:

— Íria?

Era Sara, estranhei sua chegada, ainda era manhã.

— Oi amor. Pode entrar

Sara entrou fechando a porta rápido atrás de si, sentou no vaso fechado e ficou em silêncio

o box embaçado me impedia de ver sua expressão, então abri uma fresta para poder olhar para aqueles olhos rasgados, por trás dos óculos grandes e redondos

que como resposta começaram a embaçar pelo vapor.

A expressão em seu rosto era dura como quem fechou portas dentro de si.

Cortei o silêncio:

— E aí? Como foi?

Ela riu de um jeito frio e eu fechei o box

Comecei a lavar meu cabelo curtíssimo e ao mesmo tempo Sara disse do outro lado:

— Foi ruim

— Ruim… como?

— Acabou de vez.

A água fez silêncio,

ela, que até então tinha o poder de enevoar o banheiro todo, pareceu esfriar sob minha pele

gélida,

escorreu pelo meu corpo levando pelo ralo minhas palavras.

Sara pareceu entender

continuou:

— Ela disse que eu não preciso dela. Que não recorro a ela quando preciso. Disse que sou auto suficiente demais…

Dessa vez eu é que precisei rir friamente, completando:

— Como assim, Sara? Quais eram as expectativas dela? Te trata como a mãe dela e depois reclama da sua autossuficiência?

— Por isso é que dei um basta.

Quando está pensativa, ou triste, Sara usa poucas palavras

uma expressão impassível

seus olhos de fenda que normalmente exalam um tom matinal, solar

acabam nublados nos dias difíceis

não precisava vê-los para saber.

Cautelosa, perguntei:

— Então foi você quem terminou?

Do outro lado, Sara se levantou

andou até a pia e passou as mãos pela cabeça raspada

distingui pouco por trás do box embaçado,

Sara constatou:

— Eu renasci, né?

Ela se virou na direção do box e abriu uma fresta para me olhar nos olhos,

pude confirmar o estado das nuvens lá dentro

continuou:

— Agora eu fecho as portas e pronto. Como é que ela teve coragem de tentar virar minhas qualidades contra mim, Íria? Chegou com todos os sentimentos dela e colocou nas minhas costas, para depois dizer “que se não a ela, recorro a quem quando preciso?”.

A enxurrada de seus olhos levaram minhas palavras antes mesmo que se formassem

Sara completou:

— Eu recorro a mim! Recorro a mim e disse isso a ela. Quando as coisas não vão bem, quando o mundo parece que não passa de hoje, é a mim que eu recorro primeiro.

Nessa hora toda água do mundo

transbordou em nosso pequeno banheiro

sob o peso de uma verdade compartilhada

essa, especialmente.

— Entra aqui.

Disse, abrindo o box.

A mulher chuvosa tirou as roupas

os óculos

já o pesar, entrou junto

Fiz silêncio enquanto ela se molhava ainda mais,

o peito de Sara arfava como um sinal de que o coração, encharcado demais

vazava

ela me abraçou forte e a água quente nos abrigou

As águas do chuveiro e dos olhos levaram pelo ralo o nosso ímpeto insuportável e compartilhado de tutelar o mundo.

Escutei as vozes no andar de baixo

sorri.

uma vida inteira deste hábito me ensinou,

recorro a mim porque posso

e preciso.

Anuviada, me desfaço

Recolho as partes que ficam

e abro portas mais uma vez

insistindo em encontrar caminhos novos para correr

novas casas para morar e gente nelas a quem recorrer,

também.

--

--

Maní

Escrevo para não morrer e acabo vivendo mais do que o planejado.